O Ingresso na Universidade de São Paulo - uma abordagem de gênero

Contexto da educação superior no Brasil

No panorama do ensino superior, de acordo com Censo da Educação Superior 2011 do INEP, o Brasil conta com mais de 6,5 milhões de estudantes matriculados(as) em cursos de graduação e, constata-se na figura 1 que a tendência de crescimento se acentua especialmente dos anos 2000 em diante.

Figura 1: Evolução da matrícula na educação superior de graduação por dependência administrativa - Brasil, de 1980 a 2011

Ainda considerando o último censo, ao isolar a variável gênero percebe-se a predominância do sexo feminino. Nos últimos 10 anos o percentual de matrícula de mulheres representou cerca de 56% a 57%, ao passo que o de conclusão do curso ficou em torno de 60% a 63%.

Figura 2: Evolução da participação percentual de matrículas em cursos de graduação (presencial e a distância) por Sexo - Brasil,  2001‐2010

Figura 3: Evolução da participação percentual de concluintes em cursos de graduação (presencial e a distância) por Sexo - Brasil,  2001‐2010

 

O Censo da Educação Superior 2010[1] do INEP confirma a expansão de matrículas em cursos tecnológicos: em 2001 era quase 69 mil e, em 2010, atingiu a marca de mais de 781 mil. Esse crescimento de mais de dez vezes na década deve-se principalmente a investimentos do setor privado da educação que responde a uma demanda de mercado indicando que ainda há carência de profissionais com esse tipo de formação.

Além do mercado profissional, há reconhecimento do governo[2] que há necessidade de investimento na formação de recursos humanos nas áreas de ciências naturais e engenharia já que em 2008 a taxa de formados foi de 3% e 2%, respectivamente. Europa e China já ultrapassaram a marca dos 15%. Expressão recente dessa preocupação é o programa Ciência Sem Fronteiras [3] que privilegia as ciências exatas e biológicas, bem como a tecnologia.

No entanto, embora as mulheres sejam maioria no contexto geral da educação superior e esteja havendo investimentos e incentivos nas áreas conhecidas como STEM (sciences, technology, engineering and maths) a procura dessas carreiras por mulheres ainda é bem menor que por homens.

 

Participação da mulher

A participação da mulher nas carreiras de ciência e tecnologia traz diversos benefícios sociais entre os quais pode-se citar: potencial econômico que esse contingente representa, diversidade de pensamento em determinados ambientes científicos e incremento indireto da qualidade da educação, visto que boa parte do Ensino Fundamental no Brasil é delegado às mulheres [4].Figura 4: Porcentagem de mulheres que recebem o diploma de bacharel em engenharia nos Estados Unidos

Além disso, proporcionar iguais oportunidades a homens e mulheres nestas carreiras, significa também promover os direitos humanos de segunda geração[5]. Significa promover a igualdade ao conferir liberdade real para que a mulheres possam escolher livremente o que desejem, sem que existam, por exemplo, restrições formais ou informais que indiquem que a vocação para uma dada profissão é mais ou menos adequado de acordo com características biológicas [6].

A preocupação em cada vez mais frequente em diversos países no mundo, ainda é tímida no Brasil. Nos Estados Unidos, o percentual de mulheres que se graduam engenheiras vem decrescendo na última década. Obter dados como estes sobre universidades brasileiras focando a variável sexo ainda é uma tarefa difícil. Esse recorte ainda recebe pouca atenção e praticamente não se empreenderam estudos mais extensos com esse objetivo na Universidade de São Paulo, a maior pública do país.

 

Objetivos

O objetivo deste estudo é traçar um panorama do interesse de estudantes por áreas de conhecimento, de acordo com gênero, na Universidade de São Paulo a partir dos dados de inscrição e aprovação dos últimos 5 anos. É também propósito verificar se há desbalanceamento entre as áreas do conhecimento exatas, biológicas e humanidades.

Assim, deseja-se verificar se, comparativamente aos homens, há áreas em que o percentual de mulheres interessadas é menor. Nesta situação, fica o questionamento de porque há falta de interesse feminino por tais carreiras. Fica também a provocação sobre o papel da universidade na cadeia do ensino: não caberia a ela ações junto aos níveis de Educação Básica e Fundamental que promovam reflexão acerca deste tema?

Se esse percentual for menor, cabe verificar o quão menor é e qual a sua variação, seja na inscrição ou na aprovação. Nesta situação precisamos saber então quais perfis e habilidades são desejados e valorizados? Isto seria um tipo de filtro implícito da universidade ou a questão ainda permanece exógena?

Se houver pouco interesse das mulheres, no momento da inscrição, por alguma área, carreira ou curso, isso significo que existe algum tipo de filtro social anterior ao próprio vestibular. Agora, se o percentual de aprovação de mulheres seja superior ao de inscrições, teremos um desempenho superior delas. Caso ocorra o inverso, teremos um desempenho inferior. Qual Portanto, buscar-se-ão respostas a essa questões a partir do levantamento bibliográfico e de dados levantados.

 

Metodologia

A FUVEST (Fundação Universitário para o Vestibular)[7] gentilmente forneceu dados percentuais, discriminados por gênero, dos(as) inscritos(as) e dos(as) aprovados(as), por cursos e carreiras, no período de 2008 a 2012. A Universidade de São Paulo foi escolhida para análise por ser a universidade brasileira de maior relevância internacional e que muitas vezes tem suas diretrizes seguidas por outras do mesmo país. Tais dados foram consolidados numa mesma tabela e os cursos/carreiras agrupados em exatas, biológicas e humanidades, conforme critério da própria fundação por entender que tal divisão é consolidada e bem consensuada na comunidade da Universidade de São Paulo - embora ainda fruto de muita discussão.

As seguintes carreiras foram consideradas da área de exatas: ciências biomoleculares , ciências da natureza, computação, engenharias (todas, exceto agronômica e florestal), física, física médica, geofísica, meteorologia, astronomia, estatística, matemática, matemática aplicada, geologia, informáticas (todas), licenciatura em geociências e educação ambiental, licenciatura em matemática / física, oceanografia e químicas (todas).

As seguintes carreiras/cursos foram consideradas da área de biológicas: ciências biológicas, ciências biomédicas, ciências da atividade física, ciências dos alimentos, ciências médicas, bacharelado em educação física, educação física e esporte, enfermagem, engenharia agronômica, engenharia florestal, farmácia-bioquímica, fisioterapia, fonoaudiologia, gerontologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, nutrição e metabolismo, obstetrícia, odontologia, psicologia , saúde pública, terapia ocupacional e zootecnia.

As seguintes carreiras/cursos foram consideradas da área de humanidades: administração, arquitetura, artes cênicas, artes visuais, biblioteconomia, ciências contábeis, ciências da informação e da documentação, ciências sociais, curso superior do audiovisual, design, direito, economias (todas), ciências atuárias, editoração, filosofia, geografia, gestão ambiental, gestão de políticas públicas, história, jornalismo, lazer e turismo, licenciatura em educomunicação, letras, marketing, música, pedagogia, publicidade e propaganda, relações internacionais, relações públicas, têxtil e moda e turismo.

Com os dados consolidados foi feita análise sob a luz da bibliografia indicada e dos debates fomentados pelo grupo de discussão de gênero do PoliGNU [8], formado em março de 2012.
Entre as vantagens desta metodologia estão:

  • relevância da universidade objeto de estudo e sua influência nacional;

  • considera-se toda a população e não apenas uma amostra, evitando problemas de representatividade;

  • considera-se o período dos últimos 5 anos, o que cobre uma geração estudantil completa (cursos duram entre 4 e 5 anos).

Entre as desvantagens desta metodologia estão:

  • foram recebidos apenas dados percentuais e não os números absolutos, inviabilizando algumas análises mais precisas;

  • considera-se um período de 5 anos, o que limita análises mais amplas e o estabelecimento de correlações entre mercado de trabalho.

 

Dados – apresentação

A tabela 1 e os gráficos 1 e 2 apresentam os percentuais médios de inscrições, agrupando os cursos por áreas de ingresso (conforme classificação da FUVEST) na Universidade de São Paulo, no período de 2008 a 2012.

As tabelas 2 e 3 mostram em quais os cursos há maior diferença no número de inscrições, a primeira com predominância do gênero masculino e a segunda, com o do feminino.

A tabela 4 e os gráficos 3 e 4 apresentam os percentuais médios de metrículas, agrupando os cursos por áreas de ingresso (conforme classificação da FUVEST) na Universidade de São Paulo, no período de 2008 a 2012.

As tabelas 5 e 6 mostram em quais os cursos há maior diferença no número de matrículas, a primeira com predominância do gênero masculino e a segunda, com o do feminino.

 

Dados - análise

Observa-se na tabela 1 que a área mais balanceada entre os sexos masculino e feminino é a de humanidades, cujo percentual de inscritas fica entre 55 e 65%. Nas biológicas a balança pende mais para o público feminino, que representa entre 65 e 75%, ao passo que nas exatas ocorre o inverso, ficando o público masculino responsável por cerca de 60 a 65% das inscrições. Na tabela 2, referente às matrículas efetuadas, vê-se que a área mais balanceada entre os sexos masculino e feminino é a de humanidades, cujo percentual de inscritas gira em torno dos 50%. Nas biológicas o público feminino representa entre 60 e 70%, ao passo que nas exatas, o público masculino é responsável por 65 a 70% das matrículas.

Percebe-se um desequilíbrio de gênero, seja para a predominância do masculino nas exatas, como do feminino nas biológicas, permanecendo as humanidades mais bem equilibradas no geral. No entanto, observa-se que independentemente da área (biológicas, exatas ou humanidades) há uma queda no números de mulheres entre o instante da inscrição e o da matrícula, ou seja, após a prova do vestibular. Esse fato, não tem grandes efeitos nas humanidades, ameniza a desigualdade de gênero nas biológicas e acirra o desequilíbrio das exatas.

Este é um ponto que merece destaque e maior investigação. Por que em todas áreas há diminuição da participação feminina? Uma análise relevante deveria considerar a evasão nesta fase, ou seja, verificar se ainda é um fenômeno exógeno à universidade se intensificando apenas – porém, tais dados não estão disponíveis para aprofundar a análise. Por outro lado, uma possibilidade é que as provas são um processo seletivo que, como qualquer avaliação seleciona e valoriza uma combinação de domínio de determinados conhecimentos e também de determinadas habilidades. Isto é, seleciona-se sempre um desejado perfil.

Além dessa visão macro, foram listados os cursos mais desiguais, de 2008 a 2012, seja no momento da inscrição (tabelas 2 e 3), seja na matrícula (tabelas 5 e 6). Os resultados das tabelas 2 e 5 revelam que entre os cursos com predominância do gênero masculino estão apenas cursos de exatas. Os resultados das tabelas 3 e 6 revelam que entre os cursos com predominância do gênero feminino estão majoritariamente cursos de biológicas, com algum presença de algum das humanidades, como por exemplo, pedagogia ou artes cênicas.

Nas inscrições, 11 cursos se revezam entre os 10 mais masculinos. Já no momento da matrícula esse espectro se amplia para 16 cursos. São cursos que estão presentes nas tabelas 2 e 5 em todos os anos: Engenharia Elétrica (ênfase em Eletrônica) (São Carlos), Engenharia Mecânica (São Carlos), Engenharia Aeronáutica (São Carlos) e Engenharia Mecânica - Automação e Sistemas (Mecatrônica) (São Paulo). E, considerando a presença em pelo menos 4 dos 5 anos analisados nas tabelas dos cursos mais desiguais 2 e 5, a lista passa a incluir também os cursos de Engenharia Elétrica (ênfase em Sistemas de Energia e Automação) (São Carlos), Bacharelado em Ciências de Computação (São Carlos), Engenharia de Computação e Engenharia Elétrica (ênfase Computação) (São Paulo) e Engenharia de Computação (São Carlos).

Nas inscrições, 13 cursos se revezam entre os 10 mais femininos. Já no momento da matrícula esse espectro se amplia também para 16 cursos. São cursos que estão presentes nas tabelas 3 e 6 em todos os anos: Terapia Ocupacional (Ribeirão Preto) e Terapia Ocupacional (São Paulo). Ao considerar a presença em pelo menos 4 dos 5 anos analisados nas tabelas 3 e 6, a lista passa a incluir também os cursos de Fonoaudiologia (Ribeirão Preto), Enfermagem (São Paulo) e Nutrição - Matutino (São Paulo).

Conclusões

Estudos recentes [6] apontam que as barreiras para o envolvimento feminino nos cursos de STEM tem três tipos de origens: sociais e ambientais que moldam os interesses das meninas, o ambiente da faculdade e o preconceito, mesmo inconsciente. Não há nada demonstrado que justifique que diferenças biológicas existentes entre homens e mulheres causem limitações ou pré-disposições intelectuais. O que se vem verificando dia a dia, pesquisa a pesquisa é que a associação de um gênero específico a determinadas profissões (e cursos) é fruto de construções sociais[9]. Desta maneira, é possível promover alguma reorganização social para corrigir distorções, já que não se trata de determinismo biológico.

Como promover e o qual é a efetividade de ações nesse sentido é o que diversas universidade do mundo vem buscando – infelizmente, esse movimento ainda é muito insipiente no Brasil. No caso da Universidade de São Paulo, não há ações institucionais que abordem a divisão sexual existente em seus cursos. Neste estudo constatou-se que entre inscrições e matrículas, em todas áreas, há queda do percentual feminino. Isso porque seleciona-se um determinado perfil de estudantes desejado. Isso não significa dizer que se desejam menos mulheres, mas que o perfil buscado é o que valoriza determinadas habilidades, mais estimuladas nos homens, em detrimento de outras.

Assim, uma recomendação seria proceder estudos que reavaliem o perfil desejado e quais habilidades e competências a prova do vestibular deseja selecionar. Como as habilidades valorizadas tidas como masculinas não o são pela natureza, mas por estímulo, cabe ações internas e externas à universidade de estímulo à participação das mulheres no desenvolvimento das áreas de STEM.

Estudo realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, revelou que algumas gerentes de Tecnologia da Informação (TI) , que expressam mais empoderamento do que outras, o fazem por meio de um processo de conscientização e estímulo de suas potencialidades para ocupar cargos gerenciais.[10] Logo, passar por um processo reflexivo de seu papel e receber motivação ao invés de tolhimento pode ser um dos caminhos para que as próprias mulheres interessem-se por áreas de exatas, como TI, e reconheçam-se capazes de alçar cargos de gerência.

Logo, é fundamental discutir abertamente sobre esteriótipos e o preconceito que carregam, bem como encorajar meninos e meninas a desenvolver as mais diversas habilidades e não apenas algumas. Não estimular nas meninas atitudes ligadas ao cuidado e ao ambiente doméstico em detrimento das ligadas ao raciocínio lógico e exposição pública. E o contrário nos meninos. Durante seu desenvolvimento, ambos devem ser expostos à diversidade de estímulos e devem ter real oportunidade de escolha.

A universidade brasileira pode ser catalisadora desse processo na medida em que é responsável pelo desenvolvimento de ciência e tecnologia. Portanto, pode promover pesquisa e ações locais que podem servir de exemplo e ser replicadas. Nisso incluem-se:

  • adotar processo seletivo com objetivos claros e transparentes no que tange tanto a conteúdo quanto a habilidades e competências,

  • estreitamento de relações com outros níveis de ensino tendo em vista promover a igualdade de gêneros e a desconstrução de preconceitos;

  • promoção de debates acerca do tema dentro e fora do espaço universitário;

  • estabelecimento de programas de mentoring para que haja algum tipo de suporte aos(às) estudantes que, do gênero feminino ou masculino, são especialmente sensíveis quando são minorias.

 

Portuguese, Brazil

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